É. Olhar para o lado e perceber e ver que toda a gente continuou com tudo. Toda a gente prosseguiu e progrediu na estrada da vida. Toda a gente continuou a ter a sua casa, a sua sala, a sua televisão, o seu quarto, a sua cama, os seu bonecos, os seus sítios, as suas lembranças. Toda a gente continuou a ver o sol e o céu, o mar e a luz. Toda a gente continuou no seu espaço com as suas pessoas. Toda a gente continuou a viver. Toda a gente continua tudo. O dia continua a nascer todo os dias, o sol continua a pôr-se todos os dias. Os telejonais têm notícias para dar todos os dias e todos os dias têm ainda 24 horas. Afinal o mundo continuou a girar, eu é que não. É. Quem perdeu fui eu, tão verdade que nem eu queria ter razão. E todos podem, apesar de tudo, resmungar com o que quiserem, que estão todos a um oceano de distância de ter a noção do que é ver uma vida inteira e tudo o que ela tem e significa desfazer-se em pedaços de um dia para o outro. Literalmente. Queixem-se da política, queixem-se da economia, queixem-se do tempo e da saúde. Queixem-se sempre. Eu também já fui assim. E um dia pode ser que vos queixeis com razão. Pode ser que nesse dia as queixas vos doam, assim a bom doer, lá dentro e bem no fundo. É. E continuai com as queixas.. Até ao dia em que elas vos passarem para o lado de lá da pele. E que tudo mais vá para o inferno.
A morte vem de longe Do fundo dos céus Vem para os meus olhos Virá para os teus Desce das estrelas Das brancas estrelas As loucas estrelas Trânsfugas de Deus Chega impressentida Nunca inesperada Ela que é na vida A grande esperada! A desesperada Do amor fratricida Dos homens, ai! dos homens Que matam a morte Por medo da vida.
E depois é isto. É o ponto em que se começa a ter mais medo da vida que de tudo resto. É o ponto onde tentar rir sem parar para não chorar, e falar alto, bem alto, para tentar diminuir o estrondo da dor deixam de ser suficientes. É o ponto onde pela primeira vez na vida escreves de forma consciente a única palavra que achavas algum dia ser impossível. É o ponto onde o desespero já começou a toldar o resto e o que sobra é quase nada. É o ponto onde o esgotamento começa a ganhar à vontade. É o ponto onde se vai desprendendo, a cada dia que passa, a cada semana que se conta, a cada mês que entra na conta, a tantos e todos os momentos de desespero que já estão na fatura, uma corda da fita gigante que um dia, ainda há menos de um ano, foi gigante. É o ponto onde já não há Norte nem ideia dele, onde se continua em queda e nada muda essa direcção, não se pode fazer nada, onde tudo se esgota, onde pedir ajuda não vale de nada porque os problemas do umbigo e do património de cada um já estão resolvidos, onde cada momento que passa é só mais um empurrão para o fundo, para o escuro. É. Pode acabar o mundo agora, ou só o meu, que já seria uma heroína. 355 dias em queda livre para o fundo e ainda me levanto da cama. Mas agora há uma diferença: já todos encontraram solução para os seus problemas, todos estão no seu "caminho certo" e eu já não quero. Já quis demais e tive de menos. Já deixei de entrar
Pena que quando se acorde para a vida seja tarde demais. Tarde demais para sorrir. Tarde demais para brilhar. Tarde demais para olhar o sol. Tarde demais para olhar para o céu. Tarde demais para amar. Tarde demais para dizer " És importante". Tarde demais para dar as mãos e dizer "Juntos vamos conseguir". Tarde demais para ter paz. Tarde demais para acordar e pensar em coisas boas. Tarde demais para sonhar. Tarde demais para sentir o calor e o frio e andar ao ar livre. Tarde demais para ver o azul do mar e o verde das montanhas. Tarde demais para saber ouvir o outro. Tarde demais para olhar para o outro e perceber, de fora para dentro, um bocadinho do que lá vai dentro. Tarde demais para tentar recomeçar. Tarde demais para também voltar atrás. Tarde demais para fazer algo enquanto é tempo. Tarde demais para repensar em soluções. Tarde demais para fazer tudo diferente. Tarde demais para refazer tudo outra vez. É pena. É mesmo pena que só se acorde para a vida tarde demais. É pena. É mesmo pena.
O "amanhã" é só o tempo mais estúpido que existe. E toda a gente conta com ele. Toda a gente espera por ele. Toda a gente se esquece que ele pode nem chegar. Toda a gente se esquece ainda que às vezes, muitas vezes, ele chega tarde demais. E toda a gente se agarra estupidamente a ele. Deixa-se para o amanhã a felicidade. Deixa-se as atitudes que podem fazer algo por nós enquanto é tempo. Deixa-se as palavras e os actos. Deixa-se o tempo de ter paz. Deixa-se o sol e o brilho dele. Deixa-se os sorrisos e as partilhas. Deixa-se a disponibilidade e o tempo a dedicar ao outro. Deixa-se tudo e mais qualquer coisa porque "amanhã é que é". E entre isto esquece-se que o amanhã não está lá à nossa espera. Que não tem que esperar nem dar nada a ninguém. Que conjugar a vida no futuro pode ser tramado. E ironicamente, lá está, o amanhã chega quase sempre, sim... pena que tarde demais.. pena que já tudo se tenha desvanecido nessa espera.. pena que seja quase sempre necessário ir longe demais para se chegar a ele.. pena que isto só seja apreendido pelas pessoas no fim da linha.. pena que depois do fim da linha se tenha tempo e disponibilidade para tudo e mais qualquer coisa.. pena que esse tempo e essa disponibilidade para fazer algo enquanto é tempo já venha fora de validade.. pena que antes disso ninguém tenha sequer tempo para desviar o olhar e ver essa data. Lá está, na vida como em tudo, so há tempo de ver os prazos de validade depois de estarem vencidos.. É, o amanhã não é sempre longe demais mas ė muitas vezes tarde demais. Pois, é não existir um milésimo de segundo de disponibilidadr que seja para olhar para o lado e sentir o que nos rodeia a estragar-se, pedaço a pedaço, dia após dia, de dentro para fora.. às vezes nem é preciso ver a data.. basta olhar para o aspecto. É. "Amanhã é que (não) é". E assim, dia após dia, semana após semana, mês após mês, se vão fazendo as escolhas da vida não fazendo nada para as mudar.
É o peso de todas as dores. É o peso de todas as feridas. É o peso de toda a mágoa e toda a revolta. É o peso de "Julho". É o peso das ruas daquela cidade. É o peso daquela estação. É o peso de voltar a entrar numa carruagem. É o peso deste ano inteiro de inferno que passou e da incerteza do que vai vir. É o peso de reviver tudo. Mil vezes mais magoada e um milhão de vezes mais ferida.
Quem perdeu fui eu. Fui sempre eu.. Sou eu. Há perdas e perdas, e se há alguém no meio de tudo isto que perdeu tanto de tudo até ao limite de perder o Norte e se perder a si próprio.. esse alguém sou eu, tenho sido eu. Perder tudo até ao limite de já nem lembrar bem um bocadinho do tudo que um dia se teve. Perder tudo até onde já não resta mais nada. Perder tudo até descer bem fundo e descer tão fundo até onde a luz não chega. Ser espectador e personagem principal de todas estas perdas e ver as luzes apagarem-se, uma a uma, muito lentamente. Gritar, arrancar cabelos, pedir socorro, e perceber que do fundo ninguém ouve nada. Afinal quem perdeu fui eu e perdi ainda antes do início. Já estava perdida que dá dó e ainda nem sonhava com um pedaço que fosse deste pesadelo. Perdi ainda antes de partir para a batalha. Perdi ainda não tinha começado e seria sempre a derrotada, ainda que não existisse batalha. Perdi antes. Perdi quando começou. Perdi sempre mais de cada vez que quis ir à luta e tanto mais quanto maior fosse a força. Parti muito mais de trás e para me salvar teria sempre de chegar muito mais longe. Perdi e fui apanhada de surpresa. Perdi e fui arrastada para este jogo perdida e sem saber as regras. Perco sempre e serei sempre a derrotada escolhida a dedo enquanto isto durar. Há coisas contra as quais não vale a pena lutar, ainda que aceitar isso seja perder e perder doa daqui até à lua, vezes mil. Perdi quando torci as entranhas e revolvi o céu e o inferno na vã tentativa de fazer algo, o que quer que fosse, contra esta mais-que-perdida batalha. Perdi -perco- sempre que acredito que posso vencer. Perdi e perco de cada vez que tento não perder e perco tanto mais quanto mais tento não perder. Perdi -perco- de cada vez que tento/acho possível soldar as perdas e passar-lhes por cima, dia algum. Quem perdeu fui eu e perco ainda de cada vez que tento pensar que há mais e não sou a única. Perco simplesmente e sempre mais por não poder fazer nada. Porque fui eu que vi os meus sonhos e planos serem arrancados a ferros e desfeitos pedaço por pedaço. Porque fui e sou eu que me perdi tanto que ainda ando às aranhas no meio de tudo isto. Porque fui eu que fiquei sem nada trancada e cerrada entre muros inquebráveis a ver tudo desaparecer. Porque sou eu que me tenho deixado arrastar pelos dias, caída, ferida, magoada e presa por todos os lados.
Esta primeira metade do ano foi olhar para todas as dores e feridas e tentar fazer algo antes que fosse tarde demais. Falta o resto. Resto é uma palavra feia mas depois de tudo já não sei se estou preparada para muito mais. Talvez o calor comece a ajudar a secar as feridas todas... ou algumas. Mais que nunca me vem aquela frase: "Como o Senhor é meu pastor nada me faltará". É das pouquíssimas certezas que a lucidez ainda me deixa ter.
Um dia, um dia qualquer, um dia do mês que vai marcar os 365 dias deste inferno, és acordada para a dor, e percebes que há dores e feridas que estão condenadas a não desaparecer, que há vias sacras que temos que aguentar sozinhos. Ou que se aguenta até quando der. Até quando a dor deixar, até onde as feridas permitirem. E percebes que a dor já vai tão longe e tão funda que já está espalhada pelo corpo e por tudo o que mais houver. Sou a única náufraga num mar de sobreviventes ou a única sobrevivente num mar de náufragos.