(Antes de ler: Esta história é um conto que decidi escrever e é pura ficção. Tem muito daquilo que estou a viver neste momento, claro que tem. Tem muito daquilo que sou: a Júlia podia ser eu e o Pedro podia ser alguém que muito bem conheço. O Guilherme não conheço, nasceu só de uma ideia. Dei à história um contorno muito diferente da realidade e acho que gostei do que fiz.)
Júlia sempre foi conversadora, simpática e agradável, embora fosse também crítica, durona e extremamente exigente com ela e com todos.. talvez por isso sempre tivesse sido uma aluna de excelência. Cresceu numa família cheia de luz e de amor e sempre se habituou a conviver com muita gente porque os pais tinham um restaurante onde ela passou muito tempo. Na altura de escolher um curso superior, aliou o gosto que sempre teve pela biologia e pelo funcionamento do corpo às notas brilhantes e escolheu Medicina. Fez do curso quase uma missão, como fazia com tudo aquilo a que se dedicava, e foi até a melhor aluna do curso. Na Universidade mais perto de casa porque, se havia coisa da qual não abdicaria nunca, era de ter a família e as raízes sempre por perto. O seu percurso foi o normal, sempre foi uma menina responsável, equilibrada e amorosa com aqueles que faziam parte da sua vida. Foi fazendo amigos com facilidade por ser conversadora, embora fosse reservada, e nunca deu grandes problemas aos pais. Talvez por ser reservada e até tímida, e por se juntar a isso o tempo que sempre dedicou aos estudos e à leitura, a verdade é que Júlia não namorou nem teve, durante a fase da adolescência e início da universidade, qualquer namorado ou "flirt" ou paixão.
Pedro sempre foi simpático, conversador e agradável, embora fosse também extremamente rebelde e tivesse uma personalidade que gostava de desafiar as regras e os conceitos. Astuto, opinativo e super brincalhão e até infantil, sempre gostou de viver ao sabor das suas vontades e sentimentos. Cresceu numa família estruturada e com muito amor, que sempre lhe foi tentado impôr regras, embora muitas vezes tivesse sido difícil. Era brincalhão e inconstante, e isso não costuma dar infâncias ou adolescências fáceis para os pais. Mesmo assim, a verdade é que sempre teve mais inteligência e sorte que juízo e lá foi seguindo a vida, tendo escolhido estudar Direito. Não queria fazer o curso perto de casa mas os pais impuseram-no e ele teve de aceitar. Naturalmente era daqueles estudantes de Direito que discordam da legislação, reivindicam uma série de mudanças em tudo e gostam de pensar em esquemas para contornar a lei de forma duvidosa. Pedro sempre fez amigos com facilidade, sendo popular, e era a pessoa de quem se gosta logo à primeira impressão. Criava facilmente empatia com qualquer pessoa, adaptava-se muito bem às situações e tinha grande capacidade de levar as pessoas na sua conversa. Sempre foi também popular entre as raparigas e gostava disso e de se sentir apreciado. Achava que conquistava quem quisesse, o que não era totalmente verdade mas também não era mentira, e teve uma namorada na Escola Secundária. Depois teve várias paixões ou "flirts" que não passaram disso mesmo.
Júlia e Pedro frquentaram a mesma Escola Básica mas não se conheciam. Conheceram-se apenas no nono ano e de fugida, mal imaginando que integrariam a mesma turma na Escola Secundária. Durante o ensino secundário acabaram por fazer parte do mesmo grupinho e iam-se dando bem. Com o tempo, e já depois na universidade, o grupo manteve-se e a empatia entre os dois tornou-se ainda maior. Brincavam, riam, pegavam um com o outro - muito porque Pedro adorava contrariar as ideias de Júlia, sempre nobres e corretas - e eram bons amigos. Pedro adorava irritar Júlia e tocar nos pontos fracos dela, ou naquilo que ela achava importante, e Júlia adorava que ele o fizesse para lhe responder "à letra". Amigos, sim, só amigos. Júlia andava demasiado absorvida no curso e na sua vidinha e, por mais que gostasse de Pedro e não soubesse se até queria mais que uma simples amizade, nunca colocou isso sequer como hipótese. Eram demasiado diferentes, ela achava não se enquadrar no estilo dele e considerava que se ele gostasse dela não andava a "flirtar" com quem lhe apetecia e tentaria aproximar-se dela. Ele, por mais que gostasse dela e soubesse o impacto que ela tinha nele, nunca teve a capacidade de se tentar aproximar ou de tentar com ela aquilo que fazia com as outras miúdas. Talvez por serem amigos, por terem um grupo em comum e por ela fugir completamente do perfil a que ele estava habituado. Talvez por tudo isso... a verdade é que de forma indireta foi sempre dizendo que gostava dela, admirando-a, elogiando-a, fazendo questão de a abraçar, de a ouvir... de tudo isso. Gestos que podiam ser "brincadeira" como também podiam ser mais do que isso.
À medida que se aproximava do final do seu curso, Júlia deu por si a pensar mais em Pedro. Deu por si a sorrir mais cada vez que ele pegava com ela, a gostar ainda mais de estar com ele e das brincadeiras dele. Deu conta de tudo isso e percebeu claramente que não sabia lidar com isso. Era-lhe demasiado difícil e tinha definido na sua cabeça que seriam amigos e só amigos. Achava ser demasiado diferente de Pedro e achava ainda mais que não sabia lidar com aquele lado "mulherengo" dele. Para a deixar completamente bloqueada bastava juntar o facto de terem um grupo em comum e Júlia ter um medo gigante (maior que aquele que já teria numa situação normal) de que uma relação com ele pusesse alguma coisa em causa. Júlia não sofreu, achava simplesmente que seriam só amigos e que encontraria alguém como ela quando tivesse de encontrar. Alguém que lhe desse tranquilidade e não a fizesse sentir numa montanha russa. Pouco depois disso Pedro apresentou uma namorada, e Júlia ficou sem saber o que sentir. Durante o período em que se sentiu mais ligada a ele chegou a desejar que ele tivesse alguém para que ela ultrapassasse isso. E de um momento para o outro ele tinha alguém. Júlia não ficou propriamente abalada nem surpreendida, era a vida a seguir. E os meses foram passando. Passaram e a verdade é que Júlia, ao contrário do que esperava, sentia que Pedro brincava ainda mais com ela e tinha mais necessidade de a provocar. Um ano depois Júlia deu por si a refletir e, numa retrospetiva, percebeu claramente que Pedro estava a ter brincadeiras que deixavam no ar a ideia de que poderia gostar dela. Não lhe fazia sentido, ainda mais quando isso surgiu depois de ele ter assumido a relação com a Maria. Foi também nesse verão que Pedro teve uma atitude que desconcertou Júlia. Houve uma noite em que estavam a celebrar o aniversário de uma amiga, numa casa de praia, e Júlia para se divertir bebeu dois copos de vinho. Nunca acontecia, Júlia nunca bebia, mas naquela noite quis e lá bebeu. Pedro, apanhado de surpresa, e numa atitude que era a última coisa que Júlia poderia esperar, não a largou um minuto. Abraçou-a, não a largou um minuto quando saíram de casa para dar um passeio, e não descansou enquanto não se fartou de lhe dizer que ela era especial e de brincar afirmando que ela gostava dele e que iam dormir juntos. Júlia teve pela consciência de tudo e não disse quase nada, como era seu hábito. Ficou surpresa e limitou-se a encostar ao ombro dele. Seria o que tivesse de ser... mas naqueles momentos Júlia soube que havia ali sentimentos que nenhum deles era capaz de extravasar. Júlia ficou também extremamente assustada com o sentia e com o facto de Pedro ter uma relação e não foi capaz de conversar sobre isso, nem nos tempos seguintes.
Os meses passaram e a verdade é que Pedro agia como se nada tivesse acontecido... e Júlia também não era capaz de expressar nada. Limitava-se a deixar o tempo passar mas perguntava-se até que ponto Pedro não teria sentimentos por ela... mesmo que racionalmente soubesse que se ele gostasse dela não teria namorada. Talvez Júlia esperasse que a relação dele acabasse, talvez não. Era uma confusão que a deixava nublada, sem chão e sem forças. Ainda mais porque Pedro continuou sempre com as mesmas brincadeiras e com brincadeiras que iam deixando dúvidas em Júlia. Passara-se dias, semanas, meses. Pedro continuava o seu caminho e a sua relação e mantinha o mesmo registo com Júlia... brincando e dizendo coisas que tanto podiam ser uma grande brincadeira (ou parvoíe) como uma insinuação de que tinha sentimentos por ela. Júlia desgastou-se, torceu-se, refletiu, repensou, escreveu, parou, pensou, duvidou, pôs em causa tudo. Não conseguia enfrentar a questão e confrontar Pedro... não sabia como o fazer. Conhecendo-o como conhecia também achava que ele ia brincar e fugir à questão. Não esperava dele um sim e também sabia que ele não lhe fecharia a porta dizendo um não. Foram dos meses mais desgastantes e angustiantes da vida de Júlia. Com a ajuda e o amor incondicional da família, com a presença e o carinho das amigas de curso e com a dedicação que devotava à profissão lá foi superando. Ainda chegou a fazer psicoterapia e percebeu a dificuldade que tinha em demonstrar sentimentos, a forma como nos podemos apaixonar por alguém que é tudo aquilo que não somos e muitas outras coisas. Um ano depois estava com o coração em paz. Pedro seria um amigo e ela estava de coração aberto para seguir e ser feliz. É aí que o Guilherme entra na nossa história.
Guilherme era calmo, simpático, agradável, boa onda, muito tímido e boa pessoa. Cresceu numa família de professores e apesar de introvertido nunca teve grande dificuldade em fazer amigos. Era um miúdo simples e pacífico, sem grandes dramas e sem perfil para se envolver em problemas. Sempre foi um apaixonado por carros, desde criança, pelo que na hora de escolher um curso escolheu naturalmente Engenharia Mecânica. Não tendo grandes problemas em socializar, a verdade é que Guilherme tinha dificuldade em aproximar-se das raparigas. Era tímido e introvertido, o que não ajudava, e depois também escolheu um curso onde não haviam quase raparigas. Assim, era um miúdo com nenhum jeito para flirtar e pouco sucesso entre as miúdas.. até porque traçava, ainda que não percebesse, limites àquelas que se queriam aproximar. Guilherme era também amigo de infância de Pedro. Mais do que isso: o seus pais eram amigos e vizinhos, daqueles amigos que fazem férias juntos e tudo, e os dois andavam constantemente juntos desde que nasceram, no mesmo ano.
Júlia conhecia Guilherme mas apenas de vista e de o encontrar uma vez ou outra com Pedro, de raspão. Acontece que nesse verão Pedro organizou um jantar onde estava Guilherme e foi nesse mesmo jantar que Guilherme disse estar preocupado com o resultado de umas análises que tinha feito. Andava constantemente a sentir-se mal e não sabia porquê, pelo que fez umas análises que revelavam alguns valores alterados. Foi também nesse jantar que Júlia se disponibilizou a ouvir Guilherme e a ver as análises. Acabaram a noite a sorrir e a brincar, de uma forma que surpreendeu quem lá estava, e descobriram que o problema de Guilherme era uma deficiência de vitaminas do complexo B, resolvida com um suplemento. Depois desse jantar reencontraram-se numa festa organizada pelos pais de Pedro e a seguir Guilherme levou um amigo e o seu filho a uma consulta com Júlia, que era interna de pediatria. Foi depois disso que Guilherme convidou Júlia para a sua festa de anos, ao que se seguiu um convite para um jantar a dois. A partir daí, a história segue o guião do que se lê nos romances e no final desse ano já Júlia e Guilherme eram um par de namorados. Parecidos um com o outro - muito parecidos - e cúmplices, ambos se foram deslumbrando e descobrindo o bom que era ter alguém. Foi Guilherme quem contou a Pedro que tinham começado a namorar e Pedro sorriu e disse que sabia que ia acontecer. A partir daí tudo decorreu normalmente. Júlia e Guilherme chegavam até a comparecer juntos a eventos do grupo de Júlia e Pedro e Pedro mantinha a relação com Maria e o registo de brincadeira com Júlia. Chegaram até a jantar os quatro, Guilherme, Pedro, Júlia e Maria.
Passaram-se quase três anos. Júlia e Guilherme continuavam, diferentemente daquilo que ela como boa pessimista esperava, juntos e felizes. Guilherme havia-lhe dado uma paz e estabilidade que ela já tinha achado que nunca encontraria. Havia recuperado uma crença no amor e na vida que tinha ficado perdida à medida que foi crescendo. Pedro continuava a ser a mesma personalidade inconstante e provocadora. Nada de novo, portanto. Passaram-se quase três anos e Guilherme queria mais: queria planos de vida, queria planos para o futuro e queria incluir as palavras casamento e filhos nas conversas com Júlia. Pedro apoiou sempre a relação de ambos mas era um apoio que, embora não parecendo, era mais gozo e brincadeira que apoio. Isto é, Pedro achava piada ao facto de eles terem uma relação mas na verdade não encarava aquilo como algo sério... Era algo que quase lhe parecia surreal e estranho. O seu melhor amigo e a sua Julinha... dava-lha para rir. Para Júlia estavam a ser anos tranquilos e felizes. O internato esgotava-lhe muito do tempo que tinha e o resto era para a família, para Guilherme e para os amigos. A possível "história" com Pedro tinha ficado lá atrás, e embora nunca o tivesse confrontado ou conversado sobre isso, estava bem resolvida. Pedro seria sempre Pedro, e com o tempo e a entrada de Guilherme deixou de valorizar o que ele pudesse dizer.
Nesse inverno, contudo, houve um episódio com Pedro que deixou Júlia estupefacta. Numa sexta à noite, em que Guilherme não estava porque tinha jogo de futebol, tinham combinado com o grupo de amigos ir beber um copo à cidade e tudo correu normalmente. Conversaram, riram e acabaram por falar daquilo que fariam se de repente surgisse uma gravidez não planeada. Sendo um assunto mais dirigido às meninas, os rapazes também participaram. Júlia disse logo que, antes de terminar a especialidade, era uma loucura pensar em ser mãe, mas que, se de repente estivesse grávida, o mais provável era não ser capaz de fazer uma interrupção... até porque Guilherme queria muito ser pai e ela acabou em pediatria por adorar crianças. Pedro ficou muito sério com o que Júlia disse e limitou-se a exclamar "O quê?? Tu não estás bem, vocês batem mal!" mais alto que o necessário. Os restantes disseram, no geral, que não estavam preparados para ter filhos, e Pedro limitou-se a dizer que queria ser pai mas num futuro longínquo. Mas foi nessa noite, enquanto se dirigiam aos seus carros para ir embora e caminhavam só os dois, que Júlia foi surpreendida. Pedro foi repescar o assunto e questionou-a quase exaustivamente sobre a relação com Guilherme, sobre o que sentia por ele, sobre a forma como ele era, sobre o que ela pensava da relação, sobre os planos que tinham. Não ficou por aí. Não fosse Júlia já estar surpreendida com o interrogatório repentino quando Pedro nunca lhe havia sequer feito grandes perguntas sobre Guilherme, Pedro continuou. Continuou e disse, de forma séria e alto "A sério que tinhas um filho com ele?! Com o Guilherme? A sério? Jura-me aqui e agora que não sou eu o pai dos teus filhos!" Júlia, embora admirada, continuou a andar para que ele fizesse o mesmo e limitou-se a dizer "Pedro, nós somos namorados há quase três anos e, além disso, tu também tens uma relação!" e não deu mais espaço para que a conversa continuasse. Foi o caminho de volta para casa com aquela frase de Pedro a ecoar e ficou completamente desconcertada. As pernas até lhe tremeram. Ainda assim, abraçou o pai e o irmão quando entrou em casa, bebeu um copo de chá calmante, atribuiu a cena de Pedro ao copo de vinho que o viu beber e aos problemas que o assolavam no trabalho e foi dormir. No dia seguinte nada de novo, e tudo seguiu em paz. Pedro continuou a agir naturalmente, embora se tivesse tornado um pouco mais brusco com Júlia. Mais ácido nas respostas, com mais tendência a desconstruir o que ela dizia, a partir para o ataque... mas apenas isso.
Na última semana desse ano Júlia estava de férias e tinha ficado em casa de Guilherme. Antes da hora de almoço estava na cozinha, sozinha, a fazer omoletes e panquecas. Guilherme tinha ido à bomba de gasolina e prometera voltar rápido, pelo que quando ouviu alguém bater à porta e depois abri-la achou que seria ele. Júlia estava em pijama e ficou surpreendida quando viu que era Pedro que entrava à procura de Guilherme e rapidamente apertou o robe que tinha para se cobrir. Pedro ficou admirado por vê-la lá, ainda por cima sozinha na cozinha e em pijama, e começou a brincar com isso. Disse precisar de falar com Guilherme e depois, quando viu que Júlia estava a ter dificuldade em lidar com o fogão, ofereceu-se para a ajudar. Foi para a beira dela e, encostado a ela, segurou-lhe na mão para lhe explicar como voltava a ligar o fogão. Foi aí que, quase colados um ao outro e com ele a segurar-lhe no braço, Pedro a olhou nos olhos e disse "Júlia, acho que...". Júlia olhou-o entre o medo e a surpresa, com o coração acelerado, e ficou suspensa nos olhos azul-cor-de-mar dele, pelo que ele nem acabou a frase e beijou-a na boca. Segurou-a nos braços dele, como se tivesse medo que ela fugisse, e colou imediatamente a sua boca à dela beijando-a com paixão e sofreguidão. Não, não era um beijo calmo.. era um beijo intenso e carregado de paixão, com a pressa de quem tem medo que acabe rápido ou seja só um sonho. Júlia, que de imediato ficou envolvida naquele beijo e perdeu as forças, entregando-se por inteiro, estava a ficar sem ar e tentou parar dizendo "Pedro, não...". Mas ele não a deixou acabar a frase. Apertou-a mais contra si, agarrou-lhe o cabelo e continou a beijá-la. Beijou-a pelo pescoço enquanto lhe ia acariaciando o corpo todo e ela fazia o mesmo. Ao fim de uns minutos, Júlia reuniu força suficiente para se afastar dele e disse, num fio de voz e ainda a tremer, o mais rápido que conseguiu para não voltar atrás "Pedro, vai embora, Pedro, por favor sai daqui". Ele inspirou e com a mão na cabeça dirigiu-se para a porta, saindo.
Quando a porta se fechou, Júlia deixou que a fraqueza das pernas a fizesse descer até ficar sentada no chão, lágrimas gordas a escorrerem continuamente por entre soluços. Pela primeira vez na vida estava sem caminhos, sem forças, sem reação e de coração desfeito. Pedro saiu pela porta e já não voltou a casa, onde estava Maria. Correu até ao carro e, enquanto as lágrimas lhe caíam pela cara e dava murros no volante, sentia um nó que lhe apertava o peito e o deixava sem ar. Conduziu até ao escritório e fechou-se no seu gabinete sem dizer nada a ninguém.
Para ele, ter visto Júlia na cozinha, descalça, meia despida e a sorrir genuinamente, de volta do fogão, foi o maior sopapo da sua vida. Sim, estava preparado para ouvir Júlia filosofar sobre grandes assuntos e temas, estava preparado para ouvir Júlia esgrimir argumentos de forma radical e absoluta até que eles se esgotassem, estava preparado para ouvir Júlia a fazer discursos com termos médico-clínicos. Estava preparado para ver Júlia ser altamente elogiada e receber prémios académicos, estava preparado para que ela se destacasse pela sua postura, discurso, qualidade académica e profissional. Mas não, Pedro não estava preparado para ver a Júlia-namorada ou a Júlia que é só uma mulher como as outras e vai para o fogão fazer coisas em pijama enquanto sorri. E isso deu-lhe a volta ao coração no momento em que abriu aquela porta. Isso fê-lo perceber que era aquilo tudo o que mais queria na vida, afinal: ter aquela Júlia, a que anda em pijama e descalça a sorrir, pela sua cozinha, pela sua casa e pela sua vida. E toda aquela cena de paixão foi a prova de que Pedro tinha andado a fugir: ele desconfiava que a Júlia-mulher fosse apaixonante, mas estava habituado á Júlia-amiga e à Júlia-médica.
Para Júlia, foi quase o mesmo. Achou normal que Pedro tivesse aparecido na casa do melhor amigo, mas no momento em que ele se encostou a ela e lhe pegou na mão para a ajudar com o fogão desisitiu de lutar contra o que estava a sentir. Naquele momento estava nos braços dele e não queria estar noutro qualquer lugar do mundo... queria ser dele e queria que ele fosse dela, e nada mais importava. A única coisa que quis, naqueles instantes, foi ficar ali para sempre e perder-se nos braços dele vida fora. Nunca tinha permitido, e ela tinha consciência disso, qualquer tipo de aproximação da parte dele. Ela era assim e criava naturalmente barreiras às pessoas. Mas tê-lo ali, e ver e sentir o acesso de paixão dele por ela, despertou-lhe sentimentos que nunca tinha imaginado sentir. Era ele quem ela queria ter a entrar pela sua cozinha e pela sua casa com beijos apaixonados, disso não duvidou.
O dia passou. Júlia recompôs-se a todo o custo, até porque Guilherme ia voltar, e disse-lhe estar com tonturas e má disposição para evitar ter de falar. Ficou o dia inteiro numa angústia e numa agonia inexplicáveis e à noite foi para sua casa. Pedro fechou-se no gabinete e enviou uma mensagem a Maria a dizer que surgiu um problema urgente. Só saiu de lá às 21h e foi de carro até à beira da praia. Às 23:30 Pedro enviou uma mensagem que dizia "Falamos sexta?". Júlia estava no quarto a chorar nos braços da irmã mais nova e viu logo a mensagem. Com o coração a subir e descer uma montanha russa disse "Sim. À noite?" E Pedro pediu que sim. Era quarta, e os dias de quinta e sextam duraram uma eternidade. Júlia evitou estar com Guilherme, mas ele insisitu em ir a casa dela na quinta e ela revolveu as entranhas para agir normalmente. Pedro tentou fugir de tudo e de todos e nem capacidade tinha para se concentrar no trabalho, tendo a vida facilitada porque Maria estava fora em trabalho.
Sexta à noite. Júlia e Pedro tinham combinado ir ter ao pé da praia à noite. Nenhum dos dois tinha sequer conseguido comer nada durante o dia todo. Sentaram-se no paredão e nenhum deles sentiu o frio de fim de Dezembro. Pedro começou e disse que não sabia o que tinha acontecido mas que tinha mexido com ele de uma froma que ele nunca imaginou... que não estava preparado e foi apanhado de surpresa mas o que estava a sentir era muito intenso. Júlia disse que também não tinha explicações mas estava completamente perdida com o estava a sentir, que era muito intenso. Decidiram ir conversar para o carro de Pedro. Estiveram duas horas e meia a falar. Falaram do passado, falaram das relações que tinham, falaram de sentimentos. Choraram os dois, choraram quase do princípio ao fim, e falaram de sentimentos... que era aquilo que nunca tinham conseguido fazer. Concordaram que iam ambos terminar as relações que tinham, que não fazia sentido continuarem depois do que tinha acontecido e do que estavam a sentir. Júlia falaria com Guilherme nesse fim-de-semana e Pedro falaria com Maria quando ela regressasse. Continuaram a conversar e souberam os dois que queriam ver até onde aqueles sentimentos os levariam. Depois da conversa, das palavras e das lágrimas ficaram os dois aninhados um no outro e beijaram-se com paixão. Agora sem surpresas...agora com vontade, com sentido e com sentimento, deixando-se os dois levar pela paixão e pelo amor que estavam a sentir.
A conversa com Guilherme foi dura, do mais difícil que Júlia alguma vez tinha feito na vida. Não lhe falou de Pedro ainda, falaria a seu tempo. A conversa com Maria também foi difícil, sendo que ela fez uma série de cenas dramáticas chegando a chorar e gritar com Pedro.
Júlia e Pedro estavam juntos sempre que podiam e iam sempre para fora da cidade, dado que ninguém sabia de nada. Apenas as irmãs de Júlia sabiam. Ao fim de uns meses foi Júlia quem falou com Guilherme e disse que estava a começar uma relação com Pedro. Guilherme teve uma explosão de sentimentos e disse tudo o que Júlia não queria ouvir mas já estava à espera de ouvir. Depois foi Pedro quem falou com Guilherme. Foi muito, muito difícil, e Guilherme fez o que Pedro não estava à espera: disse que não queria mais vê-lo ou falar com ele. Mas Júlia e Pedro tinham de o ter feito. Já não conseguiam mais ter de sair do seu meio para estarem juntos, já não queriam mais esconder. Estavam completamente apaixonados e perdidos um pelo outro e tudo o que mais queriam era poder viver isso em paz.
Não foi fácil, que não foi, assumirem a relação. Tinham de o fazer e foram fazendo naturalmente. Os amigos reagiram bem e com surpresa. Os pais de Júlia também. Os pais de Pedro nem tanto, estavam reticentes e não era fácil para eles por serem amigos de Guilherme e dos seus pais. A vida seguiu com naturalidade e Júlia e Pedro foram descobrindo o quanto gostavam, afinal, um do outro. Nunca tinham imaginado, ou não de forma real, o quanto encaixavam bem um no outro. Mas estavam felizes, felizes de uma forma completa e sentiam-se realizados de uma forma especial. Ele era a lufada de ar fresco que ela sempre tinha procurado sem ter consciência disso. Ela era a calma e a estabilidade que sempre lhe tinha feito falta sem ele saber.
Dois anos depois, Guilherme encontrou novamente o amor e estava com uma linda psicóloga. Júlia e Pedro continuavam juntos, felizes e com planos para o futuro. Guilherme continuava sem querer falar com Pedro embora ambos sentissem falta um do outro. Tinham partilhado juntos histórias de uma vida inteira, tinham crescido juntos e acompanhado sempre a vida um do outro. Era um vínculo de infância e de sempre. Viam-se quando tinham festas e na rua e continuavam sem falar. Ambos sentiram bastante a falta do outro quando, dois anos depois, cada um deles casou. Ambos viram que havia ali um lugar de infância por preencher. Um ano depois Guilherme foi pai e, com o brilho e a capacidade de renovação que só uma nova vida dá, decidiu responder à mensagem de Pedro e ligou-lhe a agradecer. Foram juntos, na semana seguinte, beber um copo. Conversaram, riram e celebraram. Ficaram em paz com o passado e com aquele pedaço de vida de que ambos sentiam falta. Regressaram à infância, reviveram aquilo que tinham juntos e apaziguaram as mágoas. O mesmo aconteceu quando, depois, Júlia e Pedro foram pais. Conversaram, riram, celebraram e reviveram a própria infância através das novas vidas que cada um deles tinha gerado.
A vida é muito mais complexa, densa e tortuosa do que aquilo que podemos imaginar e os sentimentos são-no ainda mais. Aprenderam todos muito:
Júlia levou uma lição de vida e aprendeu que não controlamos o coração nem devemos fugir daquilo que sentimos. No mar daquilo que são as nossas emoções não há certo nem errado... e pode-se amar alguém de quem eramos amigos, e pode ainda mais amar-se alguém que "não ouve a mesma canção"... pode mesmo! Aprendeu a ter a coragem que nunca imaginou ter quando assumiu perante ela e o resto do mundo que era Pedro o amor da sua vida. Toda esta história foi, para ela, um curso intensivo de como ter coragem e assumir o que se sente.
Pedro cresceu, cresceu muito. Percebeu que teve uma falta de coragem que lhe ia custando o amor da sua vida, que se deixou arrastar pela vida sem agir nem viver o que sentia, que foi incorreto (profundamente incorreto) para com ele próprio, e que só no limite teve um impulso que o fez dar um passo. Levou uma lição de coragem e de auto-conhecimento. Mudou muito e ganhou uma seriedade e responsabilidade que até o surpreendeu a ele próprio. Continuou a brincar, estava na sua essência, mas ganhou outros limites.
Tudo está bem quando acaba bem. Pedro percebia isso todos os dias quando a sua filhota, que tinha a cara dele e o feitio sério e argumentativo de Júlia, lhe corria para os braços com o maior sorriso do mundo. Percebia isso todos os dias no momento em que segurava Júlia nos braços quando entrava em casa e ainda mais quando, todas as noites, ela se aninhava no colo dele e encaixavam de forma perfeita um no outro... que era a maneira que o universo e Deus tinha de lhes dizer que nasceram para ser um do outro.