Quando se começou a falar no vírus do momento, eu achei simplesmente que seria algo que nos passaria um bocadinho ao lado, ou que seria uma coisinha que não alteraria as nossas vidas. Eu como muita gente. Eu, que estava tão descontraída ao ponto de ter marcado, há já algumas semanas, uma viagem para Barcelona com mais três pessoas agora no fim de Março. Até ao início desta semana eu ainda estava relativamente descontraída.
Depois o número de doentes aumentou a sério. Depois as universidades começaram a fechar, uma por uma. Depois percebeu-se que o número de doentes não vai parar de aumentar. Depois tive um julgamento adiado por causa do corona vírus. Depois fiquei passada e extremamente furiosa porque houve indicação de adiar todos os julgamentos a Norte do país (e só a Norte, prejudicando gravemente os estagiários). Fiquei ainda mais passada porque os estagiários tem de entregar a partir de 6 de abril relatórios de julgamentos. Depois houve um despacho do Conselho Superior da Magistratura que determinou o adiamente de todos os julgamentos no país (à exceção dos processo em que estejam em causa direitos fundamentais) e toda a minha revolta parou ali. Parou ali a minha revolta, a minha fúria e parou ali tudo, pelo menos para mim. Depois veio a OMS declarar que estamos perante uma pandemia. E depois veio o Governo determinar o fecho das escolas e das discotecas em todo o país.
Já não vou a Barcelona. Já não vou jantar fora sábado. Já não vou tomar café a sítios fechados. Já tive medo de ir imprimir uns documentos que eram imprescindíveis. Tenho medo de ir ao supermecado. Já não estou sequer a pensar nos relatórios que tenho de acabar para a Ordem. Já não estou fixada nos planos que tinha de entregar os relatórios à Ordem em abril, fazer a entrevista em maio e fazer os exames escritos em Junho. Já me perdi dos planos que tinha para terminar todos os relatórios e estudar incessantememte. Há quatro dias escrevi aqui um texto e, em todo ele, escrevi que no dia 9 de junho estava livre e tinha o exame da Ordem feito, acontecesse o que acontecesse. Em quatro dias perdi todos os planos e todas as certezas. Provavelmente todas as entregas e exames da Ordem vão ser adiados. Provavelmente vamos todos ficar parados em casa. Provavelmente o país vai parar de ponta a ponta. Provavelmente todos os exames vão ser adiados.
Já não estou preocupada com os planos rígidos e desenhados ao milímetro que tinha. Já não estou a sonhar com os dias em Barcelona e com o terraço da casa que já tínhamos escolhido. Já não sei, como há quatro dias sabia, que no dia 9 de junho estarei livre.
Porque eu no início achava que o vírus não tocaria nas nossas vidas. Porque eu no início achava que não nos trocaria as voltas. Mas depois percebi: o problema não é, definitivamente, só o vírus em si. O problema não se coloca nos termos de podermos morrer todos amanhã por causa do vírus (que não vamos morrer). O problema coloca-se, e isso eu percebi quando vi e ouvi médicos a falar, no plano dos recursos: o problema coloca-se quando podemos atingir um estado em que não há ventiladores, nem camas, nem profissionais para socorrer todos. O problema coloca-se quando se torna humana e física e matematicamente impossível socorrer todos: porque não há equipamentos suficientes, porque pode não haver profissionais suficientes, porque a saúde em si já se vive e já se realiza muitas vezes no limite dos recursos. O probelama coloca-se quando um país se pode ver obrigado a ter de escolher quem vai socorrer, ou quem vai socorrer primeiro. E eu não quero sequer imaginar um país assim, e não quero sequer pensar que isso poderá vir a ser uma realidade.
E não, eu não estou preocupada propriamente por mim. Eu muito provavelmente até terei capacidade para recuperar do vírus se for contaminada. Os meus em princípio também. Mas depois há os outros: os que não tem idade nem capacidade física para resistir e os doentes de todas as idades que também não tem possibilidade de resistir ao vírus. E esses outros poderíamos ser nós. Esses outros poderiam ser a nossa avó ou o nosso avô, o nosso pai ou a nossa mãe, a nossa irmã ou irmão, o nosso amigo ou amiga.
E eu posso ficar sem poder sair de casa, posso ficar sem jantar fora, posso ficar sem ir a Barcelona, posso ficar sem cumprir com o calendário que já tinha planeado e posso ficar sem fazer os relatórios ou exames da Ordem. Com isso vou eu viver bem. Mas não posso viver sabendo que possivelmente contribui para que alguém frágil ficasse infetado e morresse. Não posso viver sabendo que fui irresponsável e que viajei e jantei fora e, com isso, contribui para que o vírus se propagasse. Não posso viver sabendo que contribui para que os hospitais colapssassem. Não posso viver sabendo que contribui para que a saúde fosse obrigada a ter de escolher quem cuida primeiro. Não, isto não é só uma brincadeira. E eu agora só quero chegar a 9 de junho com a certeza de que, de forma responsável e calma, conseguimos controlar a pandemia e lentamente retomamos a normalidade. Só quero chegar a 9 de junho e, de consciência tranquila e num país calmo, saber que posso ir a Bacelona quando quiser, saber que vou cumprir com todo o calendário planeado quando tudo retomar e que a vida continua (sempre sempre continua). Isto só depende de nós, e cada um tem que fazer a sua parte. Fazer a sua parte e esperar que a saúde consiga responder a todos os que precisarem.