Pensamentos desta quarentena (não) anunciada
Muitos dos dias desta quarentena tem sido calmos, tranquilos e até bonitos. Até arriscaria dizer quase todos. Ontem tive um dos dias mais difíceis desta quarentena e já não me sentia assim há bastante tempo. Dormi pouco e mal, senti-me muito zangada, triste, cansada, e muitas outras coisas dentro deste género. E depois ao fim, do dia, quando já me senti mais calma, tive um pensamento que fooi puro, real, triste e ao mesmo tempo apaziguador. Fui à janela, e nunca como agora olhei tanto para a vista daquela janela e daquela varanda, e então surgiu-me percebi uma coisa de forma muito real. Percebi que há sonhos que não se cumprem e nunca se irão cumprir, e vi muitos dos sonhos que eu tinha e que não se realizaram nem se irão realizar. Muitos deles já não se podem vir a realizar porque já passou mesmo o tempo deles. Eu sempre sonhei - e sempre tive como dado adquirido - que ia passar pelo percurso académico com os meus pais sempre ao meu lado. Isso não aconteceu nem vai acontecer: eles não estiveram aqui, estiveram até muito longe, e esse tempo já acabou e já passou. Foi um daqueles sonhos feito barco de papel que não sabemos para onde vai. Eu sonhei também - e sonhei muito - que ia viver muitos momentos bonitos e especiais nos braços da pessoa por quem me apaixonei. Isso não aconteceu: não aconteceu quando me apaixonei, nem enquanto estive apaixonada, não aconteceu até agora, muito provavelmente nunca irá acontecer e eu já nem sei se ainda estou apaixonada. Com ele, que foi o sonho que eu sonhei, não irá acontecer e é mais um sonho feito barco de papel que não sei para onde foi ou para onde vai. Como estes sonhos há muitos outros. Eu cheguei a sonhar muito com a ideia de ter um trabalho que me ocupasse o tempo todo, que me desse muitas responsabilidades, que me obrigasse a estar sempre a viajar, que me fizesse correr o tempo todo. Cresci, percebi o que é realmente importante na vida, e quero tudo menos um trabalho assim. Quero um trabalho que se limite ao número de horas obrigatório, que me ocupe apenas o necessário, que não me obrigue a viajar e que seja o mais perto de casa possível. É mais um daqueles sonhos que não sei por onde ficou, embora este já esteja muito longe de mim e seja uma coisa muito natural. Isto é triste - é e não deixa de o ser - mas também é um sentimento que todos temos. Há sempre desejos e sonhos bonitos que ficam pelo caminho. Nem tudo é mau: tenho a certeza que a ausência dos meu pais me ajudou a aprofundar as outras relações e me fez criar relações de amizade super importantes e especiais que de outra forma talvez não tivessem acontecido. Tenho a certeza que a ausência deles me fez trocar completamente as prioridades e me fez perceber o que realmente é importante na vida, e isso só pode ser bom, mesmo muito bom. Se era assim que eu queria: não, nunca, e se pudesse escolher ia sempre decidir tê-los ao lado. Tenho também a certeza que o desamor me trouxe, para lá de tudo, algo de bom. As passagens pelos caminhos sombrios de lágrimas e angústias, e aquele sentimento de perder uma parte da vida ou uma parte de nós, foi mais do que isso. Fez-me dar um mergulho interior e perceber melhor quem sou e o que quero, fez-me crescer muito, assim mesmo muito, e obrigou-me a ter ainda mais resistência. Cresci e aprendi, muito, e mais uma vez percebi aquilo que é realmente importante. Continuar a vida como se nada acontecesse quando temos o coração em pedaços que vão de Viana do Castelo a Faro e a alma desfeita e perdida por sítios sobrios que nem conhecemos obriga-nos a resistir e isso é importante. Obriga-nos a saber que a vida sempre continua e o sol volta sempre a nascer: mesmo que tudo doa e que ás vezes até haja dor física. Continuar a conversar e a sorrir, sempre, com alguém que amamos mas que sabemos que não nos ama é algo que nos ultrapassa mas nos faz crescer de uma forma única. Se eu preferia que na altura em que me vi perdidamente apaixonada tudo se tivesse alinhado e eu tivesse ficado nos braços dele? Sim, claro que sim. Eu desejei profundamente passar o resto da vida ao lado dele e quis muito isso, mas não foi simplesmente possível. Estava eu a ter estes pensamentos, que em si não são bonitos, e percebi também mais coias que me fizeram sentir verdadeiramente em paz. Eu não tive os meus pais comigo durante o percurso académico mas ainda hei-de tê-los ao meu lado por muitos e longos anos. Eles irão voltar, eu estarei aqui e teremos toda uma vida para aproveitar e uma série de momentos e dias bonitos e especiais para viver. Teremos tempo para recuperar memórias que já temos e para construir muitas mais, bonitas espero eu. O sonho não acabou: há-de ter outra forma mas há-de ser sonhos e há-de ser com certeza tão ou mais bonito que o anterior. O mesmo se passa com o desamor. Eu apaixonei-me e desejei partilhar a alma e a vida com ele. Não aconteceu nem irá acontecer, pelo menos com ele, mas isso não foi o fim de nada nem pode ter sido. Agora lembrei-me de uma frase: "o que resta é sempre o princípio feliz de alguma coisa" e essa frase diz tudo. Eu não sei quando nem como, mas sei que um dia há-de aparecer alguém por quem eu me apaixone profundamente e que me faça sentir a parte boa e bonita do amor. Há-de haver alguém que me faça sorrir de forma pura e nos braços de quem eu poderei sonhar e construir memórias e sonhos. Há-de haver alguém que me faça sentir o coração por inteiro e que me faça acreditar que sempre chegamos aonde nos esperam. E foi isto aquilo que eu vi ontem da minha janela. Ou melhor, foi isto que se passou dentro de mim ontem ao fim da tarde, enquanto vi a cidade do vidro da minha varanda. Há os sonhos que ficaram nalgum lugar que não sabemos onde fica e do qual nunca iremos ter a chave, e depois há todos os outros sonhos que são parte de nós e que nos fazem acordar e viver e sorrir. Todos os sonhos que nos motivame nos levam a continuar. Esses são o nosso motor e hão-de ser o nosso destino, e é desses que temos sempre que nos lembrar. No fim do dia, no fim do ano ou no fim da vida só interessa uma coisa: que aqueles sonhos que são parte de nós e que nos fizeram viver sejam sempre mais que aqueles que ficaram por lugares que não descobrimos. Que a vida seja sempre feita de poucos momentos em que olhamos para o que resta e de muitos momentos em que vemos o princípio feliz de muita coisa.