Um carro e as memórias
Hoje fui ao mecânico buscar o carro dos meus pais, que na verdade é mais meu do que deles no sentido em que fui eu que o usei e sou eu que o uso, e lembrei-me de quantas memórias um carro pode guardar. Eles compraram-no novo quando a minha irmã era pequenina, e três anos depois foram viver para fora. Eu fui com eles, voltei pouco depois, a seguir tirei a carta e aquele carro não foi o meu primeiro carro. O primeiro carro com que andei foi um carro mais antigo que era dos meus avós, e eu tratei-o tão mal que até tenho pena. Não houve ponta desse carro que eu não tivesse raspado, mas penso que faz parte de aprender a conduzir (É certo que eu conduzia muito mal, mas além de ter acabado de tirar a carta devo dizer também que essa fase foi, por motivos familiares, umas das mais difícies da minha vida). Dois anos depois de ter começado a conduzir acabei por ficar com o carro dos meus pais e tornou-se o meu carro de todos os dias. Foram anos, muitos anos, quase sete, em que aquele carro para mim foi um bocadinho casa. Houve ali dentro muitos risos, muitas lágrimas, muitas conversas, muitas viagens com amigos, muitas viagens para saídas à noite, muitas viagens para a praia, muitas viagens em nome da associação de estudantes de que fiz parte na Universidade, muito tudo. Muita vida, muita histórias, sete anos meus e muitos milhares de quilómetros ali dentro.Foi naquele carro que muitas vezes sorri com as minhas conquistas académicas, foi aquele carro que esteve lá sempre que era preciso para as atividades da minha associação de estudantes, foi aquele carro o Uber de serviço em muitas saídas de amigas, foi o carro onde tinha sempre canetas guardadas, foi o carro de muitas saídas às noites com os meus amigos de sempre, foi o carro que fez muitas vezes as curvas até ao Biba e as viagens de volta. Foi naquele carro que chorei muitas vezes de cansaço e de saudades, foi naquele carro que chorei muitas vezes quando percebi que estava apaixonada e que aquele amor não era possível por várias razões, foi naquele carro que respirei fundo e pedi forças em muitas das vezes em que sabia que tinha de estar com ele, foi naquele carro que tivemos a conversa que foi o princípio do fim, foi naquele carro que chorei praticamente todas as sextas-feiras em que tive aulas de mestrado, foi naquele carro que marquei consultas, foi naquele carro que chorei com a minha família numa tarde de verão a passar em frente à praia, foi naquele carro que me maquilhei centenas de vezes, foi aquele carro que me acompanhou no estágio, foi naquele carro que muitas vezes peguei quando não aguentava estar comigo nem aguentava aquilo que sentia e precisava urgentemente de sair para dar uma volta e apanhar ar, foi naquele carro que depois fiz milhares de quilómetros de autoestrada quando fui trabalhar para mais longe, foi naquele carro que fiz viagens em família para Espanha nos últimos anos. Aquele carro foi muito tudo. Há dois anos teve um problema no sistema de travagem, a peça não tinha previsão de chegada e eu, assustada, acabei por comprar um novo para mim. Este já podia ter sido "despachado", trocado, vendido, o que lhe quisermos chamar. No entanto acabou por não acontecer e eu tenho lá dentro muitos momentos específicos de que me lembro. Em sete anos acontece muita coisa, muita vida, muito de bom e muito de mau. E aquele carro, passem os anos que passarem, vai estar sempre lá quando eu me lembrar de tudo isto. E pronto, nos últimos dois anos vou andando com ele e com o meu, embora mais com o meu, de forma alternada, e hoje quando o tive de volta lembrei-me de quantas memórias minhas estão lá dentro.